Cultura contemporânea e Depressão

A alta incidência da depressão na atualidade tem sido considerada uma consequência da cultura contemporânea.

Para tentar compreender isso vou fazer uso de uma metáfora. A estrutura psíquica pode ser entendida como uma rede de representações. Um tecido que se constrói sobre um vazio. Ali, ao longo da nossa vida, inscrevemos percepções, histórias sobre nós mesmos, com quais seguimos vivendo. Nosso eu, assim organizado, depende do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo. Esse tecido se constitui por meio de um trabalho permanente de estabelecimento de laçosesses laços se fazem por meio de passagens pelo outro. Assim os laços são as diversas modalidades amorosas responsáveis pela confiança que depositamos no destino, na importância que temos para os outros, no significado dos nossos atos corriqueiros.

Os Laços nos possibilitam amar a vida, aos outros e sobretudo a nós mesmos.

Estamos destinados a isso, pois é por meio de uma multiplicidade de laços que tecemos uma rede de sentido para a existência.

A depressão é o rompimento desses laços de amparo – momento em que a nossa estrutura falha e mostra nossa “falta de sentido”. Isso pode ser insuportável. Algumas pessoas podem passar por essa experiência em circunstancias de perdas traumáticas e a superam. Mas há ainda os que não conhecem outro modo de existir; que vivem órfãos da acolhida do “amor”, como trapezistas que oscilam no ar sem a segurança da rede de anteparo embaixo deles.

Logo, a sustentação da estrutura psíquica se faz pela capacidade de dar significado ao mundo na interação com o outro, nas suas diversas dimensões. Conhecemos uma dimensão universal que se expressa no uso da linguagem. Uma dimensão singular, que marca a diferença de cada um dentro de um contexto sócio cultural. Mas o que rege o sentido da existência é a dimensão transcendente: nela habitam os significados compartilhados.

A depressão que hoje marca o indivíduo contemporâneo, manifesta-se sobretudo a partir de um sentimento de insuficiência diante das exigências, de um saber que esmaga, de uma perda indefinida, em um tempo muito veloz.

O enfraquecimento de tradições, crenças, valores, a desvalorização das muitas instituições como a família, a escola, e muitas outras que apontam para a dimensão transcendente, colocou em primeiro plano a incerteza, a volatilidade constituindo o que chamamos de modernidade liquida.

O pertencimento aos grupos sociais não oferece a segurança de outras épocas. Os lugares onde se fundam os sentimentos de pertencimento estão indisponíveis ou são indignos de confiança e proporcionam o medo do abandono.

As instituições que estiveram presentes na nossa cultura, no passado, ofereceram referências como a ideologia, o trabalho, a filiação, por um período muito longo. Na sociedade contemporânea as referências se desfazem. Acreditamos pouco no passado.

Nesse contexto prevalecem as ambições e interesses individuais, o consumo incessante de objetos do mercado, buscando as satisfações do momento, sem dimensão de futuro.

Além disso, a existência sem uma dimensão coletiva, a despreocupação com o bem estar social, produz uma vida esvaziada de sentido, que se torna apenas exibição. Diante da valorização exacerbada da satisfação, perde se a concepção de sujeito responsável.

A lógica do individualismo contesta o mundo e qualquer valor, chegando ao ponto de questionar se existe um valor a ser seguido.

Muda nossa relação com o tempo. A demanda excessiva de trabalho, a tecnologia que possibilita o aumento e a velocidade sempre maior das informações veiculadas, produz um tempo cada vez mais restrito para que tudo se realize. A necessidade de mostrar eficiência, gera um efeito devastador no sujeito. A eficiência se torna um parâmetro para acreditar que somos felizes.

Mostrar, por meio da imagem, onde estamos, e o que fazemos esse é um sintoma social, ou seja, tratar a vida como um grande empreendimento de sucesso da sociedade de consumo. A lógica do capitalismo nos submete a isso: “querer é poder, ou você merece”.

Enfim a depressão torna se um problema cultural e social da nossa época, quando constatamos o fracasso da exigência de ser bem sucedidos. Não convivemos com o que escapa desta “norma”.

Mudou a forma de cada um se representar, surge a transição da identidade interior, que também chamamos de subjetividade, para outra referência de identidade, onde os parâmetros se deslocam para o corpo, a biologia, a ciência. Hoje, a estrutura psíquica é compreendida a partir dos neurotransmissores. A ciência aparece como a última grande utopia da humanidade. Criou se a ilusão de que seria possível tratar o mal estar psíquico do ponto de vista bioquímico. Assim se faz o apagamento da subjetividade, da transcendência. Cria se uma cultura do corpo, com as segregações(bulyngs) advindas disso.

Tudo isso explica a depressão da nossa época.

Além das depressões, as novas formas de sofrimento são os abusos de drogas, os transtornos alimentares…

Sabemos pela nossa experiência pessoal, e também pela clínica, que qualquer um que passa por um intenso sofrimento psíquico busca uma explicação para além do biológico, numa transcendência.

A vida não pode ser vista como uma patologia.

Cada um de nós precisa passar por problemas e dificuldades para que seja construída a identidade interior- subjetividade, isso se faz por meio de uma transcendência.

Construir uma perspectiva do tempo que transforma, nos ajuda a sustentar a angústia. É importante descobrir que podemos sustentar um tempo vazio através de um encadeamento, de uma trajetória, de um percurso. A “duração” é a experiência entre o antes e o depois. O que dá o sentimento de continuidade é a memória de alguma coisa que se constituiu.

O homem moderno perdeu o valor da experiência.

Só é possível promover mudanças assumindo uma posição que interroga valores e produz efeitos de vida.

Todos nós necessitamos de nos sentir acolhidos da experiência do pertencimento. São muitos os caminhos possíveis de acolhimento, entre eles está a família – um coração para um mundo sem refúgio, ela é um lugar para poder “falir” …

Concluo com o relato de uma experiência muito simples que aponta para uma saída encontrada por um paciente morador de uma “favela”, no seu contexto de desamparo psíquico e social.

Castorina, moradora da comunidade da Serra, pediu me uma consulta para seu vizinho, Manuel, que acabara de tentar o suicídio. Castorina conhecera esse tipo de sofrimento- um desespero que a levara a preferir a morte, quando procurou tratamento em um serviço, e naquele momento sentia se bem. Garantiu que Manuel também ficaria estável e prometeu lhe agendar uma consulta.

Manuel chegou no serviço de atendimento da ONG Laço acompanhado por sua esposa e Castorina, sua vizinha. Contou o que havia precipitado seu desespero: seu filho envolvera com um dos chefes do tráfico, deixando uma dívida, e Manuel foi jurado de morte. Manuel vendeu tudo o que tinha, pagou o valor exigido e enviou o filho para morar com a avó. Com todos os seus projetos destruídos, humilhado, sem recursos para continuar a viver, achou melhor acabar com a própria vida. Foi quando Castorina, a vizinha, apareceu oferecendo ajuda.

Contou mais ainda, que fora abandonado pela mãe logo que nasceu, criado em uma instituição até a adolescência, tendo se casado logo que saiu dali. E concluiu “eu nunca tive mãe, mas encontrei uma hoje, Castorina”. Ela que o teria levado para o tratamento. Ali foi medicado e convidado a participar do programa de colaborações do serviço da Laço. Em um dos encontros que se seguiu, Castorina foi com ele. Nesse dia foi a vez dela concluir que algo havia mudado em sua vida. Aquele Laço estabelecido com Manuel deu lhe uma certeza: “Agora tenho um filho e uma família para cuidar” … Esse era o remédio para sua solidão.

Recentemente, Manuel retornou com outro grave problema. De novo foi tomado pelo desejo de morte. Mas antes de ameaçar a si mesmo procurou a Laço para falar e encontrar outras saídas.

Cabe a nós oferecer a cada pessoa uma escuta singular, que possibilite um percurso a partir do qual ela possa criar ou redescobrir suas formas de lidar com o sofrimento. Apostamos assim no encontro de cada um com o próprio caminho, para fazer o Laço entre o nascimento e a morte que chamamos de vida.

Maria Inês Julião/ Gian Prakash Kaur é professora de Kundalini Yoga, psiquiatra, psicanalista e fundadora da ONG Laço

Veja também:Superando a Depressão Fria: https://www.khandprakash.com/blog/superando-a-depressao-fria/